Religião
O poder do exemplo – Por Daniel Lima
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Na última semana o país assistiu surpreso o senado aprovar – com extrema rapidez – o aumento salarial do Supremo Tribunal Federal (STF). A medida está agora na mesa do presidente da República aguardando aprovação ou veto. Para a grande maioria dos brasileiros, essa medida é no mínimo fora de hora. Não só concede mais um aumento aos ministros do STF, os quais custam mais caro que seus correspondentes europeus, por exemplo, mas obviamente, devido ao “efeito cascata”, ele concederá aumentos a milhares de outros cargos. É curioso que não chega a atingir necessariamente professores, policiais ou pessoas do sistema público de saúde. Infelizmente, como brasileiros estamos quase acostumados com decisões de nossos líderes em causa própria. O sistema é corporativista, os políticos eleitos não prestam contas de suas decisões, exceto de quatro em quatro anos e ainda assim contando com nossa quase ausência de memória política…
Tendo atuado em vários cargos de liderança, reconheço que tais desvios são compreensíveis, muito embora deploráveis. Compreensíveis a partir do fato de que o ser humano é essencialmente corrupto. Isso não significa que seja incapaz de atos de justiça ou bondade, mas que tudo o que faz está intrinsecamente manchado pelo pecado. O apóstolo Paulo destaca essa realidade nos primeiros capítulos de Romanos. Na famosa passagem de Romanos 3.10-18, citando o Antigo Testamento, ele escreve:
Não há nenhum justo, nem um sequer; 11não há ninguém que entenda, ninguém que busque a Deus. 12Todos se desviaram, tornaram-se juntamente inúteis; não há ninguém que faça o bem, não há nem um sequer.
Algumas observações são importantes aqui. Primeiramente, como citado acima, isso não significa que o homem não possa fazer algo de justo e bom. Todo ser humano traz em si a imagem de Deus distorcida e corrompida, mas ainda presente. Quando um ser humano faz um ato de justiça, ele ou ela refletem a imagem de Deus contida em si. O ponto principal dessa passagem é que nenhum ser humano tem, por meio de seus eventuais atos de justiça, mérito diante de Deus. Mesmo se pudéssemos imaginar um ser humano que cometeu apenas um pecado, este já estaria completamente condenado, pois deixou o estado de perfeição. O pecado em si é a condição de rebeldia contra Deus, e atos de pecado são decorrentes. Essa convicção é fundamental porque descreve a cada um de nós, mesmo aqueles que, tendo reconhecido sua situação, aceitaram o dom gratuito da justificação em Cristo. Uma vez reconhecendo nossa pecaminosidade, precisamos estabelecer maneiras de checarmos a nós mesmos; caso contrário, vamos nos desviar e praticar continuamente atos de injustiça e corrupção.
Não basta dar a indivíduos condições dignas (vide nossos políticos em geral), eles não se tornam justos e bons em decorrência das condições.
Esse é talvez o maior equívoco do humanismo e da ideologia chamada de esquerda. Esta pressupõe que o ser humano ou é bom ou é neutro. Uma referência nesta linha de pensamento é Jean-Jacques Rousseau, o qual concluiu que os problemas e vícios de uma sociedade não são decorrentes do caráter das pessoas, mas da corrupção das instituições. Com isso surgiu a máxima: “O homem é bom, quem o corrompe é a sociedade”. No entanto, como fica evidente tantas vezes, não basta dar a indivíduos condições dignas (vide nossos políticos em geral), eles não se tornam justos e bons em decorrência das condições. Por isso são necessários sistemas de prestação de contas, checagens ao longo do caminho, verificações de que decisões e atos do governo não estejam acima de qualquer questionamento.
Esse é um alerta fundamental a todo cristão, especialmente àqueles que exercem alguma forma de liderança. Não é raro ouvirmos líderes cristãos reivindicando uma autoridade quase absoluta devido à sua comunhão ímpar com Deus, e até mesmo convocando seus liderados a “confiar neles” sem dar justificativas de suas decisões. Em alguns casos, espero extremados, líderes buscam argumentos no Antigo Testamento para uma autoridade quase monárquica. A estes cabe lembrar que Moisés não entrou na Terra Prometida devido ao seu pecado. Davi foi repreendido e confrontado pelo profeta Natã. Na história da cristandade, alguns dos maiores delitos foram praticados por aqueles que alegavam o direito divino de liderar e, por conseguinte, de estarem acima de questionamentos.
É inegável que Deus chama alguns à liderança. Esse chamado está baseado em sua vontade e não na capacidade intrínseca do indivíduo, de forma que, assim como Deus escolhe as coisas loucas para envergonhar as sábias (1Coríntios 1.27), ele escolhe pessoas para liderar que talvez, em nossa perspectiva, não sejam as mais capazes. Isso deveria levar todo líder cristão a uma profunda e radical humildade, que não pode ser confundida com omissão, complacência ou falta de ousadia, mas a humildade de saber que sua autoridade é delegada, não uma parte intrínseca de sua pessoa. Esse princípio pode ser visto mesmo no Antigo Testamento. Quando o povo de Israel pediu a Samuel (1Samuel 8.7) que ungisse um rei, este se sentiu rejeitado. No entanto, Deus deixa claro que a rejeição não foi a Samuel, mas ao próprio Deus. Ou seja, ao resistir a um líder indicado por Deus, não é o líder que está sendo rejeitado, muito embora possa ser o mais atingido.
Na verdade, na medida que esse conceito for aplicado, fica evidente que a autoridade de um líder cristão se baseia em sua caminhada e intimidade com Deus, e não em sua competência. Talvez o texto que mais nos ajude a entender esta autoridade por exemplo de vida é 1Pedro 5.1-5:
1Portanto, apelo para os presbíteros que há entre vocês e o faço na qualidade de presbítero como eles e testemunha dos sofrimentos de Cristo, como alguém que participará da glória a ser revelada: 2pastoreiem o rebanho de Deus que está aos seus cuidados. Olhem por ele, não por obrigação, mas de livre vontade, como Deus quer. Não façam isso por ganância, mas com o desejo de servir. 3Não ajam como dominadores dos que foram confiados a vocês, mas como exemplos para o rebanho. 4Quando se manifestar o Supremo Pastor, vocês receberão a imperecível coroa da glória. 5Da mesma forma, jovens, sujeitem-se aos mais velhos. Sejam todos humildes uns para com os outros, porque “Deus se opõe aos orgulhosos, mas concede graça aos humildes”.
Muito já foi escrito sobre essa passagem. No entanto, diante de mais uma ação de nossos líderes políticos que contrariam diretamente essas instruções, parece-me oportuno rever o que a passagem ensina aos líderes que se dizem agir em nome de Jesus. Em primeiro lugar, se observa que Pedro não se intitula apóstolo, o que é curioso, pois, em um mundo evangélico com tantos “apóstolos”, aquele que com certeza podia fazê-lo não julgou ser importante relembrar ninguém de sua função. Em total sintonia com o que estava para escrever, ele prefere ser reconhecido como um presbítero igual aos demais, muito embora os lembre de que ele foi testemunha pessoal dos sofrimentos de Cristo, critério fundamental do apóstolo.
Em segundo lugar, Pedro destaca o aspecto voluntário da liderança. Ou seja, quem lidera o faz em livre resposta ao chamado de Deus. Nesse aspecto ele ecoa o apóstolo Paulo, que afirma que em primeiro lugar um candidato ao presbitério deve aspirar ser um presbítero. Ainda nesta perspectiva, liderar tem de ser algo espontâneo, algo que é assumido livremente. Ninguém pode ou deve ser forçado a assumir uma posição de liderança. Os casos em que vi isso acontecer sempre terminaram em lideranças disfuncionais e medíocres.
A não ser que sua motivação seja servir ao Rei e à sua obra, não aceite uma posição de liderança.
Terceiro, a motivação legítima é o serviço e não a ganância. Há muitos casos em que lideranças evangélicas assumem posições por mera e básica ganância financeira. Esses casos são evidentes e logo identificados. Mas há também casos que a ganância não é financeira. Embora não possa tecnicamente ser chamada de ganância, um dos maiores motivadores para jovens líderes é a popularidade e o poder… Para estes eu gostaria de dizer que, ainda que alguns possam atingir seu objetivo, o preço é alto demais. É alto demais para os líderes e alto demais para a igreja. Em resumo, a não ser que sua motivação seja servir ao Rei e à sua obra, não aceite uma posição de liderança. As demandas e conflitos inerentes à função vão consumir sua alma.
Em quarto lugar, parece haver dois lados da autoridade. Um é o lado de Deus, ou seja, ele escolhe e dá autoridade àqueles que deseja. Pessoas que são usadas por Deus como líderes espirituais não precisam nem tentam dominar. Na verdade, exercem sua autoridade com relutância, não devido à fraqueza ou temor de homens, mas devido ao fato de reconhecerem que sua autoridade não reside em si, mas que toda autoridade verdadeira se origina em Deus. Pedro destaca que nossa base da autoridade não é o poder que exercemos, mas o exemplo de caminhada com o Senhor que demonstramos. Um exemplo bíblico que apresenta isso é a relação de Davi – tanto com o rei Saul quanto na sua reação quando Absalão, seu filho, tentou lhe tomar o trono.
Por fim, Pedro relembra a todos os líderes que somos sub pastores debaixo do Supremo Pastor que um dia há de se manifestar. O rebanho não nos pertence; muito embora, com frequência, líderes se identifiquem de tal forma com seu ministério que este se torna uma extensão de sua própria vida. Existe um pastor supremo e qualquer autoridade que exerçamos é somente por delegação. Ai daquele mordomo que não lida com os tesouros do seu senhor de acordo com sua vontade!
A passagem termina com uma exortação à humildade. Nada poderia ser mais adequado. O grande vilão do coração de qualquer líder é a arrogância. Tanto pode ser aquela arrogância mais facilmente identificável – em que o líder realmente crê que tem o poder e portanto age de todas as formas para preservá-lo – como pode ser uma arrogância mais sutil – em que ele ou ela crê que seu bem-estar ou a preservação de relações cordiais é mais importante do que posicionar-se de acordo com a vontade de Deus. No segundo caso, já vi líderes serem coniventes com situações evidentes de pecado, condescendentes com indivíduos influentes, mas imaturos ou omissos com aspectos de ensino que confrontariam aqueles que este líder quer agradar…
Liderança é um tema amplo e muito complexo. Minha sincera oração é que todos nós que exercemos qualquer função de liderança possamos fazê-lo debaixo da graça e direção de Deus. E que o resultado final de nosso ministério sejam pessoas mais apaixonadas, mais rendidas, mais comprometidas com Jesus, para a glória de Deus Pai.
Daniel Lima foi pastor de igreja local por mais de 25 anos. Formado em psicologia, mestre em educação cristã e doutorando em formação de líderes no Fuller Theological Seminary, EUA. Daniel foi diretor acadêmico do Seminário Bíblico Palavra da Vida por 5 anos, é autor, preletor e tem exercido um ministério na formação e mentoreamento de pastores. Casado com Ana Paula há mais de 30 anos, tem 4 filhos e vive no Rio Grande do Sul desde 1995.